1x01 Amor Passageiro


Li em algum lugar que os sonhos são nada menos que um conjunto de imagens, pensamentos ou fantasias que se apresentam à mente durante o sono. Eles se formam durante  o R.E.M., uma fase do sono onde ocorrem os sonhos mais vívidos. Isso ocorre, se minha memória não está falhando como tudo o mais na minha vida, pois os nossos olhos, durante este momento, movem-se rapidamente e a atividade cerebral é semelhante a quando estamos acordados.

É durante o R.E.M., também, que o despertador insiste em tocar. Por mais maravilhoso que esteja sendo seu sono, por mais aplausos que você esteja recebendo dos seus fãs depois de uma apresentação espetacular de Digital Love, por mais que sejam poucos os centímetros que ainda restam entre seus lábios e os do seu príncipe, ele não atrasa um minuto e sua campainha toca irritantemente. Por exemplo, ele vai tocar ag...

TRRRRRRIIIIIIIIIIIM! TRRRRIIIIIIIIIIM!

"Mais um dia, que saco!" foi a primeira coisa que pensei quando o despertador tocou.
Não imaginava encontrar aqueles olhos verdes no ônibus hoje de manhã. Não imaginava que existisse tamanha perfeição.
Tudo começou quando, como de costume, peguei o ônibus, e como de costume, estava mais lotado que estádio de futebol na final de campeonato. As velhinhas de sempre, os trabalhadores de sempre, os adolescentes chatos falando alto de sempre... E então ele apareceu. Ficou em pé ao meu lado e esbarrou sem querer na minha mão.
"Desculpa...", balbuciaram rapidamente aqueles lindos lábios finos.
"Foi nada",disse logo em seguida, querendo achar uma forma de puxar assunto sem parecer oferecida. 
Nunca fui muito boa em puxar assunto com estranhos, especialmente quando são estranhos bonitos. Mas não podia perder a oportunidade, não podia! 
E perdi. 
Ele desceu no próximo ponto, não pude fazer nada além de lamentar minha timidez.

Para minha surpresa, no dia seguinte lá estava ele. Passando pela catraca com um lindo sorriso e, como ontem, ficou do meu lado. Dessa vez ouvi um doce "Bom dia". Respondi com um sorriso.
"Que sorte a nossa, hoje o ônibus não está tão cheio" e "Hoje vai chover pra caramba" foram algumas das inúmeras frases que eu ensaiei mentalmente, mas morreram antes que pudessem ultrapassar minha garganta. Mas que bela idiota! Eu estava ali, ao lado de um cara perfeitamente estranho e não conseguia dizer nada. Talvez eu nunca mais fosse vê-lo novamente. Não importaria se eu fizesse alguma coisa errada, só não podia perder outra oportunidade. Tudo bem que eu não queria fazer besteiras, afinal, aquele poderia ser o pai dos meus futuros filhos, a pessoa com quem poderia envelhecer e passar os maiores perrengues da minha vida. Vai lá, sua idiota, fala com ele! Oh, não.

Perdida em meus devaneios sobre em que bairro compraríamos, o meu pretendido do coletivo e eu, o nosso primeiro apartamento, eu perdi, também, mais uma chance de fazer aquele cara se apaixonar perdidamente por mim. Quando me dei conta, eu já estava perto do meu ponto e quem ocupava o lugar ao meu lado era uma velhinha com óculos um pouco grandes demais que fazia tricô com uma habilidade invejável. Se eu fosse tão habilidosa com as palavras quanto aquela velhinha era com as agulhas... Desisti de pensar no homem dos olhos verdes e segui meu caminho direto para o meu nada maravilhoso trabalho. 

Trabalho vai, trabalho vem e eu só conseguia pensar em duas coisas: o homem da minha vida que perdi por burrice e, claro, na hora do almoço. Talvez se eu fosse naquele restaurante da lasanha mais gostosa do mundo, conseguiria esquecer por pelo menos uma horinha os lindos olhos verdes. Aquela lasanha fazia milagres!
Então minha hora chegou. Para meu desespero, o restaurante estava lotado e minha única opção era me sentar com alguém. Havia três lugares com pessoas sozinhas: uma senhora que parecia querer alguém para conversar, já que quase caia da cadeira tentando ouvir a conversa das moças que sentavam do seu lado, um homem com cara de psicopata e que coçava a orelha com o dedo mindinho e um outro homem que estava de costas. Resolvi pedir para sentar com ele, já que os outros não me agradaram muito.
- Com licença, posso me sentar aqui? O restauran..." 
Fiquei paralisada. ERA ELE! ELE, O CARA DO ÔNIBUS!
- Claro! Que coincidência. E aquele sorriso... Ah, que sorriso lindo! 
Aquela era a minha chance, os deuses estavam gritando para que eu falasse com ele.
- Boa tarde!, cumprimentei um pouco sem jeito. 
- Boa tarde para você também!, e mais um sorriso. Sorriso, sorriso, sorriso. Meu cérebro estava a mil! Enquanto meus olhos se fixaram, sem eu perceber, na boca do cara do ônibus, meus neurônios trabalhavam loucamente tentando arranjar uma frase-quebra-gelo perfeita para aquele momento perfeito.
- Nunca havia vindo aqui neste horário, fica bem cheio. Você vem sempre aqui?, perguntou-me enquanto usava um guardanapo para limpar a sujeira que possivelmente estava em seu rosto, percebendo que eu não parava de olhar para seus lábios. Ainda desconcertada com a cena que estava protagonizando, não respondi a pergunta prontamente. Calei-me por uns 15 segundos e finalmente soltei: 
- Não muito. Mas talvez eu comece a vir mais vezes...
- Ué, por que?

Ele parecia confuso. Mas quem não ficaria diante a possibilidade de uma louca que você encontrou no ônibus por duas vezes seguidas (e que não desviava o olhar da sua boca) estar te cantando?
- Em outros horários, para não ser surpreendida com a casa cheia, tipo hoje. 
- Ah, entendi., sorriu.

Ficamos em silêncio por alguns minutos até que nossos pratos chegaram e pudemos comentar sobre a comida ma-ra-vi-lho-sa que era servida ali desde 1953.

- E... você gosta muito de lasanha? (Não me julguem, eu não sabia o que falar e infelizmente disse a primeira coisa que me veio a cabeça)
- Gosto, é um dos meus pratos preferidos., disse meu amado, estranhando a pergunta. Eu estava tremendo, suando, não sabia se sorria ou não. Nunca passei por uma situação dessas antes.
- E qual é o seu nome?
- Laura. Eu nem acreditava, ele queria saber meu nome! Quase engasguei com o suco.
- Pedro, prazer. E um aperto de mãos. A mão dele era tão macia, queria ela me acariciando naquele momento. Ainda bem que não é possível ler pensamentos... 
- Você trabalha aqui perto ou...?
- Não, eu estou comprando um apartamento com minha noiva aqui perto e essa semana estou resolvendo a papelada e tudo mais.

N-O-I-V-A? Eu entendi bem? Minha cabeça rodou e meu sonho de ter encontrado o cara perfeito foram por água a baixo. 
- Puxa! E conseguiram encontrar? Casal de sorte, é bem difícil achar um apartamento bom e desocupado por estas bandas., disfarcei o máximo que pude. 
- Pois é, fiquei surpreso quando encontramos., sorriu.
Olá, cara! Dá para parar de sorrir? Você ainda não percebeu que partiu meu coração e está jogando fora sua única chance de ser feliz... COMIGO? 
- Imagino., sorri de volta e fiz menção de me levantar.
- Já está de saída?
- Sim, meu horário de almoço está quase no limite. 
- Ah, claro. Foi bom te conhecer, Laura.
- Bom te conhecer também. 

Os dias se passaram e vez ou outra eu me pegava pensando nele durante algumas horas ociosas.  Que vida lixo! Emprego mais ou menos, pais e amigos longe, cidade cinzenta... Opa, vai chover. Melhor eu ir me apressando para o restaurante antes que o dilúvio comece e acabe ficando presa aqui na empresa e com fome. 

A duas quadras do restaurante quase tive um infarto quando os vi. E entrando no mesmo restaurante que eu ia, solitária, almoçar. Achei um absurdo! Era para ele se casar comigo e não com aquela ridícula magricela, de cabelo tingido.
Para minha sorte, o restaurante não estava tão cheio e para minha desgraça, A ÚNICA mesa vazia era do lado deles. Sim, BEM do lado deles. Tentei disfarçar, mas ele me viu. 
- Oi, Laura! 
- Oi... 
- Amor, esta é Laura. Laura, esta é minha noiva, Raquel.
- Olá! Você é mais bonita do que eu imaginava., cumprimentei com toda a sinceridade porque, SIM, ela infelizmente era linda.
- Obrigada, quer se sen...
Antes que a eleita do Pedro, cara do ônibus, pudesse terminar a frase, eu soltei: 
- OLHA AQUI, SE VOCÊ ACHA QUE VAI SER FELIZ COM ELA, FIQUE SABENDO QUE NÃO VAI! EU SOU A ÚNICA MULHER QUE PODE TE FAZER FELIZ. SERÁ UM ERRO SE CASAR COM ESSA... ESSA MULHER!

E mais uma vez eu peço: não me julguem, por favor. Eu não consegui me controlar. Não me passou pela cabeça que todos estavam nos olhando (me olhando, a louca que surtou por causa de um cara que conheceu no ônibus há menos de um mês) e que eu não poderia fazer aquela cena, afinal, nós nunca tivemos nada na vida além de termos dividido uma mesa em um restaurante. Mas eu fiz. E antes que eu pudesse surpreendê-lo, ainda atônito com todo aquele vexame, com um beijo, sua no...

TRRRRRRRIIIIIIIM! TRRRRRRRRRRRRIIIIIIM!

Um comentário: