1x10 Torta de Banana

A amizade é uma coisa estranha, espontânea e linda que acontece nas nossas vidas de repente, quase sem querer. Tão espontâneo esse negócio de fazer amigos que, às vezes, uma amizade nasce de um simples "obrigado" ou de um cotidiano "bom dia". É assim, falou, sorriu, ficou amigo. Tão estranha essa tal de amizade que surge entre as pessoas mais diferentes do planeta, quiçá do universo todo! Surge entre anjos e capetas o tempo inteiro. É assim, bateu, grudou, ficou amigo. Tão lindo ser amigo de alguém e saber que, não importa como, quando e onde, tem sempre alguém lá torcendo pra você se dar bem (ou pra você se foder, caso teime em repetir o erro). É assim, xingou, sorriu, chorou, bateu, apertou, falou, abraçou, grudou, é amigo. 

E engraçado como tudo lembra o seu melhor amigo, né? Alguém fala estranho e você já lembra do sotaque estranho dele de gente que nasceu na Puta Que Pariu. Alguém faz uma careta e você lembra de quando ele tomou uma lapada de cana naquela festa de fim de ano. Alguém conta uma piada e você lembra que ele já tinha contado a mesma piada, mas de um modo mil vezes mais engraçado. Alguém faz um café pra você, mas nunca fica igual ao que ele faz. Alguém manda você ir pro inferno e você lembra que ele também manda, mas sempre vai até lá com você. Alguém prepara alguma comida e você lembra que é o prato favorito dele. Alguém faz qualquer coisa e você, você só lembra dele porque é o seu melhor amigo.

Do meu melhor amigo eu lembro sempre, não importa como, quando e por quê. Mas se tem algo me faça lembrar dele instantaneamente esse algo é a torta de banana da Dona Quitéria, minha vó. Ele, eu e o mundo inteiro amamos a torta de banana que minha avó faz, mas não é por isso que eu me lembro dele. O meu melhor amigo é o Macaco. Não um macaco, seu idiota, O Macaco. 

O Maca tem esse apelido por três motivos: 1) quando a gente brincava de TV Cruj ele sempre era o Macaco. Ele era o mais alto, ué, tinha que ser; 2) A-M-A torta de banana, vitamina de banana, doce de banana... Ou seja, ele pega as coisas com o pé; 3) ostenta uma camada de pêlos tão enorme que Deus me livre! Sim, cogitamos a ideia de chamá-lo de Tony Ramos, mas por todos os motivos citados "Macaco" foi o grande vencedor do concurso "Nomeie este primata" que eu e mais dois amigos organizamos quando tínhamos 11 anos. E desde então o Marcelo se tornou o Macaco. E desde muito antes ele se tornou o meu melhor amigo. <3 nbsp="">

E aí que, como boa cozinheira que sou (não), decidi aprender a fazer a Torta de Banana da Dona Quitéria. Porque se um homem é conquistado pelo estômago, senhoras e senhores, um macaco também é. E é sempre melhor ter um macaco como amigo do que um machão filho da puta que usa todas as firulas para ganhar de você no FIFA (Fernando, isso foi pra você!). Tá bom, cansei. Dá uma olhadinha em como é fácil de fazer a torta e depois conta como a sua ficou.

Ingredientes

10 colheres de farinha de trigo
10 colheres de açúcar
1/2 colher rasa de fermento
1 copo de leite
2 ovos
Bananas (muchas bananas)
Manteiga

 Como fazer?

1. Colocar os ingredientes secos na forma e cobrir com as bananas fatiadas;
2. Pôr bolinhas de manteiga por cima;
3. Misturar o leite e os ovos e regar as bananas com a mistura;
4. Repetir tudo até cobrir a forma;
5. Levar ao forno por aproximadamente 30 minutos.

1x09 Selvagens

Eu era só mais um garoto que amava Beatles e Rolling Stones na época em que nos conhecemos. Na verdade, nunca nos conhecemos. Acho que eles nunca souberam da minha existência, mas, se souberam, hoje não se recordam mais de mim. Eu lembro deles. Lembro de cada detalhe: suas roupas, seus cabelos, as  motocicletas, as gírias, o cheiro de cigarro misturado com o de álcool na segunda de manhã.

Lembro também que vieram da Califórnia, mas eles, com certeza, não haviam passado pelo processo de Californificação. Não, eles estavam muito distantes disso. Naquele tempo, pareciam modelos saídos de propagandas de cigarros. Apesar da frequente cara de mau que ostentavam para os que não faziam parte do grupo, eram bonitos e eram bons. Não eram como baderneiros com quem eu sempre tive que conviver que achavam graça em destruir tudo e todos. Pelo contrário, por vezes os vi enfrentando os valentões para defender algum oprimido. "Você está bem?", os ouvia perguntar ao protegido pouco antes de tornarem a fechar a cara. Bom, eles tinham que manter a fama de mau. 

Certo dia, sentei na mesa ao lado da deles no restaurante da faculdade e escutei a conversa. Tommy e Gina, o casal, estavam meio receosos sobre o programa que planejavam para o fim de semana e Frankie tentava convencê-los a ir junto. 

- Ei, nós não vamos viver para sempre, então temos que viver enquanto estamos vivos! É agora ou nunca!

Falado isso a dupla concordou em acompanhar os amigos em mais uma aventura. Frankie tinha disso, sempre usava as palavras certas nos momentos certos e conseguia convencer a todos. Eu o admirava, pena que nunca pude lhe dizer isso. Mas quem sabe ele não está me ouvindo agora? Espero que sim. 

Ozzy era o último integrante do quarteto. Era chamado assim pela absurda semelhança com o Osbourne. Quando ele se atrevia a cantar no karaokê de um dos bares da redondeza, eu fechava os olhos e realmente imaginava que era o líder da Black Sabbath ali - em uma espelunca frequentada por estudantes  que não tinham nada no bolso além do maço de cigarros e o dinheiro para duas cervejas - quem entoava  "I tell you to enjoy life I wish I could but it's too late...". Seu nome verdadeiro era Benjamin e estudava Civilizações Antigas. Conheceu Frankie ainda criança e desde então não se separaram mais. 

Ozzy e Frankie eram do tipo de amigos que se não estavam juntos então algo de muito errado havia acontecido. Ou não. Às vezes um dos dois só estava em casa, de ressaca ou com um membro quebrado, se recuperando da última noitada. It's Rock'n'Roll, baby. Ao lado de Gina e Tommy, os dois desbravavam os limites da sanidade humana, se é que tais limites existiam para eles. 

Eu nunca tive muitos amigos, mas naqueles quatro eu encontrei o que eu chamava de meus amigos ocultos, porque eu escondia deles todo meu apreço por suas figuras, invejava seu estilo de vida e, acima de tudo, ansiava a amizade deles. Tentei me aproximar, travei diálogos mentais com cada um deles, mas na hora H eu não conseguia dizer uma palavra, eles me intimidavam. Mas como não ficar intimidado com aqueles caras? Eles não tinham medo de nada, bebiam, dançavam, cantavam, brigavam... Viviam. Então decidi ser como era, um homem solitário, e também vivi. 

A última vez que os vi juntos foi na formatura. Participaram da festa, confraternizaram com todos, receberam os diplomas e partiram. Partiram para o que seria a mais radical de suas aventuras: a vida adulta. Embora difícil, sei que esta etapa eles ultrapassaram com seus sorrisos estampados no rosto e o característico entusiasmo de viver. Ainda hoje lembro dos cabelos louros de Gina esvoaçantes bem logo a motocicleta de Tommy deu partida, seguidos por Ben e Frankie. Tento imaginar qual terá sido a primeira coisa que fizeram quando saíram do alcance da minha vista, provavelmente pararam em algum bar para beber e decidir o roteiro que seguiriam dali por diante.

Meus caros Frankie, Ozzy, Tommy e Gina, agora eu estou aqui, trabalhando nesta estação vagabunda de rádio (perdão, queridos ouvintes!) na esperança que, onde quer que vocês quatro estejam, possam me ouvir e, sobretudo, possam ouvir a trilha sonora que eu preparo diariamente para vocês, especialmente para vocês. E para vocês, especialmente para vocês, eu dedico a próxima música. Senhoras e senhores, Born To Be Wild!



Feliz Dia do Rock!

1x08 Instinto


Nome: X___________________X______________________X Nº: 5.327
Sexo: ( )F (x)M Idade: 27 anos Data de Nascimento: 12/04/1975
Procura espontânea: SIM
Motivo da Procura: Reincidência.
Data: 01/08/2002
Sessão: 1

- Podemos iniciar?
- Hm... É claro.

- Pode começar falando de quando tomou consciência de que havia um problema com você? – perguntou-me o homem careca, elegante e irritantemente paciente que enquanto me olhava, tenho certeza, fazia uma avaliação mental sobre minha postura, um pouco curvada naquele dia – eu estava um pouco sem jeito -, minha maneira de falar e meu comportamento. “Voz suave, calma, não aparentando nervosismo; os ombros, no entanto, estão curvados, demonstrando uma timidez iminente.”, poderia jurar que estava ouvindo seus pensamentos.

- Bom... – comecei – percebi que havia algo de errado bem cedo, aos 9, 10 anos de idade. Sempre gostei muito de ficar em casa jogando ou assistindo filmes, com muito sangue de preferência, coisas de garotos, você sabe. Nunca gostei tanto de sair para brincar como as outras crianças e acho que minha família, por ser de interior, estranhava um pouco meu comportamento. “Veja só o filho deles não saber subir em árvore nem jogar bola! Que esquisito.”, algumas crianças diziam e minha família, em silêncio, concordava que eu era retraído demais. Mas nunca interferiram, acreditavam que era apenas uma fase.

- E foi só uma fase?

- Hã... Em relação à timidez e a ausência de necessidade de me relacionar com as demais crianças, sim. Na adolescência fui para uma escola maior, fiz amigos e comecei a sair. Na verdade, saía mais por gostar de observar meus amigos do que pelo programa em si.

- Vouyerismo?

- O quê? Não, não. Nossa, não! Eu só gostava de observar. Ver suas reações e expressões em cada situação nova me animava para tentar adivinhar as próximas, entende? Era como se fosse um jogo só meu. É incrível como os rostos ficam relaxados e os sorrisos dementes quando eles estão chapados e impressionante como a expressão mudava de pura felicidade para o mais sincero terror quando eles se deparavam com seus boletins. Era cômico, para dizer a verdade.

- E quanto às suas notas?
- Nunca tive problemas.
- Namoradas?

- Nessa época só uma, Jess. Era um doce e possuía as expressões mais verdadeiras. Algumas reações um pouco exageradas para a ocasião, é verdade, mas mesmo assim verdadeiras. Ela era muito fiel ao que sentia e ao que pensava. Ah, e eu adorava seu cheiro. Namoramos por todo o colegial.

- Romperam devido à faculdade?
- Não, nós nunca rompemos.
- Você se refere a ela no passado.
- Bom...

"O paciente se sente mais à vontade. Refere-se à ex-namorada no passado, no entanto, afirma que nunca romperam. Um tanto estranho. Olha como se tentasse hipnotizar e, percebo, está avaliando minhas expressão e reação. Está jogando.”

- E teve outras namoradas depois da Jess?
- Sim, logo que entrei para a universidade, comecei a namorar uma garota que estudava Artes, Belle.
- E como era o namoro? Você gostava dela?
- Bem... Belle não era o tipo de garota com quem me casaria.
- Então porque namorar uma garota sem a intenção de casar?
- Diversão, prazer, companhia... Sei lá, gostava do seu cheiro enquanto dormia.
- Quanto tempo durou o namoro?
- 8, 9 meses... 10, talvez.
- E por que terminou?
- Não terminou.

“Ainda jogando.”

- Não é a primeira vez que você busca ajuda médica. Por que interrompeu o primeiro tratamento?
- Hm... A doutora tinha um cheiro muito familiar, era realmente agradável. Mas nós não éramos compatíveis.

“Começo a entender.”

- Como era a expressão da sua antiga médica quando...?
- Divina. Como a da Jess.
- Este é o seu segundo acompanhamento médico. Em ambas as vezes a procura por ajuda foi espontânea e você sabe que há algum problema. Mas, diga-me, como você se enxerga?
- Sou uma pessoa normal.
- Se você se considerasse normal não estaria aqui. Vamos, pode falar.
- Bom, doutor...

“Cinismo.”

-... eu me considero alguém normal. Por muitos anos, pensei que fosse diferente por causa de meus hábitos, realmente achei que fosse louco ou algum maníaco. Mas não, sou absolutamente normal. Hábitos não podem definir pessoas como pedófilas ou...

- A não ser que seu hábito seja passar horas em frente ao computador vendo pornografia infantil ou algo parecido, pode sim.

“Impaciência.”

- ... ou loucas. Ou qualquer coisa parecida. Existem pessoas que têm mania de colecionar selos com imagens de lhamas, são doentes mentais por isso?
- Não.
- E assim como elas, doutor, eu também não sou. - sorri. Deliciei-me com a elevação da temperatura em minhas mãos, olhei uma última vez para a personificação de minha arte e sai.

Sem rumo, meus pés, apoiados, acredito, por algumas memórias, levaram-me a um lugar conhecido. Uma rua estreita, mal pavimentada e com um punhado de casas velhas cuja pintura já estava descascando. Mas de onde eu conheço este lugar? Busquei em polvorosa todas as lembranças registradas em meu cérebro e soube: o homem da camisa azul. Enquanto passeava pela ruela, ia repassando na mente aquela manhã na qual me senti tão vivo como nunca me sentira antes. Nem mesmo com Jess - talvez porque ela tenha sido a primeira e eu era tão inexperiente... Continuei andando, repassando outra e outra vez o dia da camisa azul... A vida é tão simples e esse um ato tão natural. A sensação me lembra a de quando era presenteado com novos brinquedos durante a infância; de quando me apaixonei na adolescência. Se somos todos animais, por que a maioria ignora suas vontades e seus instintos? Existem aquelas pessoas que só vestem roupas de uma única cor. Têm as que precisam repetir certos movimentos determinado número de vezes. Há pessoas que gostam de brigadeiro... Eu gosto de matar.



Inspiração para a história:




Postado originalmente em 02/08/2012.