1x07 Pacto de (Des)Confiança

Maria Cecília era uma moça dedicada ao trabalho. Apesar da pouca idade, estava na casa dos quase-trinta, não saía muito de casa e não tinha amigos, alguns colegas de trabalho com quem ia a Happy Hour nas quintas-feiras, mas só. Sua rotina resumia-se a ir de casa para o trabalho, com alguns desvios vez ou outra para ir ao cinema ou ao teatro, sempre sozinha. 

Maria Cecília sofria de um mal que acomete muitas pessoas hoje em dia: a desconfiança. Maria Cecília não conseguia, por mais que tentasse, confiar em alguém. Certa vez arranjou uma amiga, uma boa amiga, Cacau, e tentou confiar, contar-lhe segredos. No início obteve êxito na missão e começou a se abrir aos poucos, mas não durou muito e sua cabeça já estava cheia de caraminholas. "Ela não é minha amiga de verdade, quer saber meus segredos para espalhar pra todo mundo.", "Fica aí querendo saber o que eu penso, o que eu faço, para mais tarde me passar a perna", "Eu não vou cair nesse joguinho dela, acabou!". E então a prematura amizade acabou. 

Dizem que pessoas do interior são desconfiadas por natureza, extremamente desconfiadas. Talvez seja esse o motivo de Maria Cecília e João Antônio não crerem nas pessoas. João Antônio também era do interior e veio para a cidade grande logo depois da morte da mãe, a última parente viva. João Antônio não acreditava nas boas-ações das pessoas, não confiava seu carro a manobristas, ficava alerta sempre que alguém não respeitava a faixa limite nas filas do banco. 

João Antônio e Maria Cecília se conheceram em uma das Happy Hour da empresa, em uma quinta-feira qualquer. Comentaram sobre o bolinho de bacalhau e o chopp que estava quente e foram embora sem ao menos dizerem seus nomes. "Pra quê ele iria querer saber meu nome?". "Não disse meu nome, nem conheço! Vai que é alguma golpista?".

Na semana seguinte encontraram-se outra vez e conversaram um pouco mais. Cada um na defensiva, falaram sobre assuntos genéricos para não haver exposição demais. Tempo, o cafézinho da empresa que não estava mais como antes ao contrário do da padaria da esquina que estava cada dia melhor, aquele assalto ao banco que foi noticiado na noite anterior...

Com o passar dos meses e outros encontros, uns casuais outros nem tanto, começaram a namorar. Outros meses mais adiante, resolveram que estavam prontos para morar juntos. "Ora, nós já estamos juntos há algum tempo, acho que já  conquistamos a confiança um no outro.". "É, eu também acho.".  Mudaram-se para o apartamento dele. "Este é o seu lado, por favor, não mexa nas minhas coisas.". "Claro. Só não mexa nas minhas também.". "Fechado.". 

Casaram-se e foram morar em outro apartamento, maior, onde cada um podia guardar suas coisas o mais distante da vista do outro. As chaves da gaveta sob a escrivaninha dele, ela nunca vira. Os objetos e documentos mais importantes, ela deixava no fundo falso sob a gaveta do armário, que também ficava trancado. Temiam chegar em casa e pegar o outro fuçando suas coisas e, assim, quebrar aquele tão hamonioso pacto de desconfiança. 

1x06 Querido diário

Querido diário,
Depois de todos esses anos estou de volta. Preciso de você de novo. Desculpe minha ausência de quase 14 anos... é que a gente cresce e acaba conhecendo outros meios para resolver nossos problemas, como ir à terapia.
Mas cá estou, sem dinheiro para terapia e sem estômago para a expressão de desinteresse que todos os terapeutas têm. Talvez não sejam todos, talvez eu que não tenha sorte. 
Precisava desabafar com alguém. E como pode deduzir, ainda não aprendi a fazer amigos.
Estava desesperada, não conseguia pensar em nada que me fizesse sentir melhor, mais leve e então achei você perdido no fundo da prateleira. 
Para falar a verdade, até escorreu uma tímida lágrima quando te vi. Muitas lembranças vieram à tona, coisas realmente difíceis que enfrentei com você, meu grande e melhor amigo.
Você deve estar se perguntando "Mas o que está acontecendo?"... não, na verdade não está, pois é (infelizmente) um diário e não um ser pensante.
Mas lhe conto, mesmo assim, o que ocorre com a minha pessoa: Tenho tido mais pesadelos. Sim, AQUELES que me atormentaram tantos anos, que registrei em você por tanto tempo... 
Eles têm sido tão reais... como os velhos tempos. Me assombram a cada cochilo, não consigo dormir. Não que eu queira, tento driblar o sono de todas as maneiras possíveis. Gasto quase todo meu dinheiro em cafeína e coisas anti-sono, mas tudo nunca é o suficiente. E o dinheiro que está quase no fim.
Depois que te deixei por alguns (muitos) anos, minha vida não mudou muito da maravilha que era. Meu pai continuava me culpando por toda merda que ele fazia, comecei ir á terapia, procurar ajuda médica... e não consegui nada, nenhuma resposta concreta, nenhum remédio que fizesse efeito.
Desisti de tudo, e eles voltaram mais fortes e assustadores. As vezes acordava sangrando, com marcas pelo corpo.
Quando a coisa ficou feia, procurei psiquiatras, padres, terapeutas, e tudo o que você imaginar... e, meu caro, ninguém realmente acredita em mim. Essa é a verdade.
Acham que me agrido, que me machuco para chamar a atenção dos outros, do meu pai, do mundo... vejo isso nos olhos deles.
Queria que vissem, que vivessem tudo o que acontece nos meus sonhos... acordassem do mesmo jeito que acordo. Aquela sombra, o medo, a chuva... a escuridão. Não é justo desejar isso, mas no fundo era o que realmente queria, que todos aqueles olhares de repente fossem de medo, desespero. E por fim, me entenderiam.

1x05 Revolta da Salada

Olá, Mundo!

Desculpe estar incomodando neste horário sonolento pós almoço, mas tenho um assunto urgente pra tratar com você. Você já deve ter sentido uma coceirinha um pouco abaixo da linha da sua cintura, o Equador, e notado umas erupções bem inflamadas que começaram há poucos dias. Os estudiosos da área costumam chamar isso de "Manifesto", a palavra não é difícil mas dá um trabalhão iniciar um. Eu sei, você sabe muito bem do que se trata, há alguns anos sente as mesmas dores e ardências nas costas.

É irritante, eu sei. Parece mais que você usou urtiga como esponja de banho. Mas não, todo este incômodo está sendo causado por um animal bem pequenino: o homo sapiens. E, sinto muito em informar, não é com qualquer Minancora que se trata. Só com um creme manipulado corretamente para cada caso: aumento de tarifas de ônibus, saúde pública precária, salários (mínimos) miseráveis etcétera etcétera etcétera. Pesquisas estão analisando quais os impactos causados pelo vinagre aos agentes do tal Manifesto.

Mas, Mundo, não estou escrevendo a você pra falar dos seus problemas dermatológicos nem tampouco sobre o que motiva o homo sapiens a se manifestar ou o que vai fazê-lo parar. Estou escrevendo para falar de mim, um homo sapiens que quanto mais se informa mais confuso fica, que se sente ingênuo a cada nova notícia, que simplesmente não consegue entender o que está acontecendo.

Segundo os astros, os nativos de Libra são indecisos e justos. Na parte da indecisão eu sou a prova viva disso. Não sei se a justiça me é uma característica tão forte quanto a outra, mas tento não tirar conclusões precipitadas sem antes ouvir os dois lados da baderna, como andam definindo os protestos recentes. E isso está me enlouquecendo.

Veja bem, Mundo, eu sei da importância de tudo o que meus compatriotas estão fazendo e apoio. Mas me confunde os neurônios existirem pessoas que não vejam nada de "útil" no que está sendo feito nas ruas. Me confunde mais ainda o fato de que um direito (o de melhoria no transporte público, por exemplo) seja reivindicado em detrimento de outro (o de ir e vir dos que não estão, ativamente, protestando).

No entanto, o que mais me confunde é: por que temos que reivindicar direitos que já estão prescritos na Constituição como sendo direitos BÁSICOS de todo cidadão? Por que é tão difícil assim seguir o regimento do País e dar saúde, moradia e transporte de qualidade a todos?

Maldito jogo de poder.

Depois de tanta confusão, eu me despeço de você, Mundo, desejando melhoras para sua urticária. E com a esperança de que num futuro não tão distante não seja preciso coçar e arder e incomodar tanto para conseguirmos direitos que já são nossos. 



1x04 Home is Wherever I'm With You


Quando olhávamos para eles, todos eles, tínhamos a impressão que tinham acabado de sair do colegial e jogaram tudo para o alto, deixaram tudo e todos para trás.

Alexander era o pior de todos, o mais desapegado, terrível. Desejava percorrer a maior parte do mundo, senão ele todo, por toda a vida. Conhecer pessoas, culturas, sabores, cheiros... E a partir do momento que fossem conhecidos e sentidos, fariam parte da sua essência, do seu espírito, da sua alma. Modificariam totalmente o seu ser e o seu estar. Sua grande ambição era abraçar o mundo. Mas não demorou muito para isso mudar. Não demorou muito para toda sua visão de mundo mudar. Não demorou para que o desapego a tudo e todos desse lugar a promessas de “vamos ficar juntos para sempre”.

Ela e ele se conheceram em um bar não muito famoso, não muito grande, não muito luxuoso, nem tampouco bonito e não muito bem visto pela “sociedade”. Apenas um bar que abrigava ele e sua gente nos momentos de alegria e, como a vida não era perfeita até ali, nem para eles, nos de desespero também.
Naquela noite, Alexander nos disse que um amigo iria tocar. "Apareçam, vão curtir!", ele nos falou. Nós fomos, mas Alexander... bem, ele também era desapegado a horário e se atrasou.

Antes dele, ela chegou. Parecia um tanto quanto deslocada, estava sozinha. Mas logo notamos que havíamos nos enganado, pouco importava se ela estava sozinha ou não, se conhecia aquela gente ou não, ela só estava ali... consigo mesma. Distribuía sorrisos para todos e se mexia graciosamente ao ritmo da música. Mas aí, em um segundo, tudo parou: seus olhos se encontraram, Alexander chegara.

Olharam-se pelo que pareceu uma eternidade, mas alguns poucos segundos se passaram. "Eu conheço você.", aproximou-se o jovem, encantado. "Creio que não, cavalheiro.", sorriu e se afastou. Mas Jade estava errada, eles se conheciam sim. Talvez não desta, mas de outras vidas. Em algum momento, temos certeza, seus destinos já tinham se cruzado antes e, agora, tornaram-se a se esbarrar.

"Você bebe alguma coisa?"
Estava feito. Alexander e a menina do olhos faiscantes beberam, jogaram sinuca (ele estava deixando ela ganhar, nunca fizera isso!) e, como esperado, reconheceram-se. E então bateram as doze badaladas. O encanto não se desfez.
"Bom, agora tenho que ir, sir.", despediu-se a garota indo em direção à porta, deixando o rapaz ali, parado, sem saber o que fazer.
"Alexander!", gritou à moça.
"Não precisava ter me deixado ganhar, Alexander!", berrou de volta, sorrindo. Foi embora.
Mas não demoraria muito para se reencontrarem, dali a poucas horas estariam juntos novamente. Jade era o nome da menina que tirara seu sono na noite anterior, ficou sabendo quando se esbarraram, pela manhã, em algum lugar da cidade, já perdera o rumo em meio aos pensamentos. Descobriu também que Jade (que nome!), assim como ele, desejava sair, sem destino, pelo mundo e absorver tudo o que iria conhecer. Mas faltava alguma coisa para que assim o fizesse, um motivo, um empurrão... Mas estava ali, parado na sua frente - mostrando-lhe os discos perfeitos para cada vitrola que estava exposta diante deles na vitrine de um antiquário -, o motivo e o empurrão que precisava. Ele sorriu.

As horas seguintes Alexander e Jade passaram conosco e mais alguns amigos, sentados na grama, cantando, rindo, correndo... Alexander contou-lhe os planos de viver por aí, longe de casa, buscando aventuras e nada mais. E ela, ah, ela amou a ideia! Mas hesitou quando convidada a vir com nosso grupo. Foi embora...

Encontraram o bilhete assim que acordaram, não deu tempo de se despedirem, que pena. Eles a amavam tanto e ela os amava também, profundamente.

Jade voltara ao lugar onde passaram a noite e ele estava lá, como disse que estaria. Ele a amava tanto e ela o amava também, profundamente. Ali a vida começara a ser perfeita. Foram embora.



Inspiração para a história:




Postado originalmente em 11/07/2011.